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moda & estilo

Presidiários têm suas vidas transformadas com o crochê e apresentam coleção no SPFW

24 de fevereiro de 2021 | 0

Conheça o projeto Ponto Firme, de Gustavo Silvestre, que capacita internos nas artes manuais. Iniciativa já virou filme e o estilista fala em expandi-lo para outras penitenciárias. 

Qual a sua primeira visão sobre um homem encarcerado? Muito provavelmente, essa ideia não contará com crochê, linhas ou agulhas, correto? E foi para ressignificar este senso comum sobre a população carcerária que o estilista Gustavo Silvestre criou, em 2015, o projeto Ponto Firme, em que ele ensina e capacita presos da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos – SP. 

Entre cursos e oficinas, os internos aprendem a arte do crochê e já desenvolveram coleções aclamadas pela crítica e apresentadas na São Paulo Fashion Week, desde 2018. No ano passado, o projeto virou um documentário.  

Batemos um papo com Gustavo Silvestre, que conta os bastidores por trás dessa missão e o quão importante tem sido fazer parte da reintegração de ex-detentos na sociedade.  

Gustavo Silvestre ensinando a arte do crochê na Penitenciária Adriano Marrey | Foto: divulgação

 SdA – O Ponto Firme surgiu em 2015 e, até agora, quais foram as grandes conquistas deste projeto? 

GS – É um projeto que tem como missão o desenvolvimento de potencialidades, o incentivo à transformação social de detentos e também de egressos a partir da moda e das artes manuaisO Ponto Firme faz parte do calendário oficial da São Paulo Fashion Weekdesde 2018, onde já apresentamos 3 desfiles. O último deles foi na edição de novembro, onde apresentamos uma coleção upcycling, feita em parceria com a NK Store, a partir de resíduo têxtil e de peças reaproveitadas da marca e com aplicação de crochê desenvolvida pelos egressos do projeto. Estreamos também um documentário longa-metragem, já nos apresentamos como exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulotivemos uma performance envolvendo egressos na SP Arte e até a exportação de mais de meia tonelada de crochê para Nova Iorque, que se transformou nos provadores da loja Farma primeira dos Estados Unidos. Essas são as principais conquistas porque estão bastante atreladas à geração de rendaao desenvolvimento pessoal e à reintegração social de detentos egressos. 

Trabalho dos alunos apresentados no SPFW, em 2018 | Foto: divulgação

SdA – Quantos internos já foram impactados com o projeto nestes 5 anos? 

GS – Dentro da penitenciária Adriano Marrey, já formamos quase 200 alunos que passaram pelo curso de crochê e oficinas. Só que o projeto ganhou um desdobramento fora do presídio também, então trabalhamos tanto com os internos quanto com os egressos, que ganharam liberdade e procuram uma oportunidade de trabalho e integração social 

Sala de aula: aqui, detentos se capacitam e ganham nova oportunidade de renda com o crochê | Foto: divulgação

SdA – Existe a ideia de expandir o projeto Ponto Firme para outras casas de detenção? 

GS – Sim e também existe a ideia de aumentar o número de egressos que são atendidos de fora do presídio. Hoje, temos alguns parceiros que estão do nosso lado, mas para que o projeto, que surgiu a partir de uma iniciativa voluntária, se expanda, é fundamental o apoio da iniciativa privada. 

SdA – Você disse, certa vez, que o crochê lhe trouxe autonomia e que gostaria que outras pessoas também tivessem essa experiência. Como foi a primeira reação dos diretores da penitenciária quando você apresentou a ideia de ensinar crochê aos internos?  

GS – O crochê traz bastante autonomia porque depende basicamente de uma agulha e de um fio. E, principalmente, de tempo paciência, coisas que existem bastante para os internos. A ideia é tornar o tempo deles produtivo, de alguma forma, dentro da penitenciária 

 a reação dos diretores foi muito positiva e o projeto só aconteceu porque existe essa mentalidade dentro da penitenciária Adriano Marrey. Apesar de ser um presídio de segurança máximaé uma penitenciária modelo existe essa preocupação em tornar útil o tempo desses detentos. Muitos já tinham contato com o crochê previamente, outros nunca tinham tocado numa agulha e acabaram aprendendo e desenvolvendo peças lindas!  No começo, eu pensei que a gente ia fazer só umas oficinas livres e a proposta se tornou um curso formal, algo profissionalizante através do qual é possível ter, inclusive, remissão de pena 

Aluno mostra suas criações em desfile dentro da penitenciária | Foto: divulgação

SdA – Você encontrou resistência por parte dos internos? Como era a percepção deles sobre moda ou crochê e como é agora? 

GS – Esse projeto é desenvolvido dentro de um dos ambientes mais machistas da sociedade, que é uma penitenciária masculina. Apesar disso, o trabalho é muito focado no desenvolvimento dos alunos, então existe uma concentração grande deles no desenvolvimento das peças, no aprendizado e uma expectativa muito grande em enxergar as artes manuais de uma outra forma.  

Nossa preocupação é muito mais sobre influenciar essas pessoas para que elas vejam na moda e no crochê uma transformação. É uma emoção muito grande quando o interno vê que o trabalho dele tem potência, possibilidade de desfilar na semana de moda e pode estar dentro de museu. Isso é muito importante para continuar estimulando essas pessoas, não só lá dentro, mas aqui fora quando elas ganharam liberdade também. 

SdA – Alguma história de vida marcou você durante esses anos? Pode compartilhar com a gente? 

GS – Acho que a vida dessas pessoas que passam pelo projeto acaba mudando automaticamente. Temos o exemplo do Anderson, que já está há 4 anos com a gente como artesão. Ele teve o primeiro contato com o curso lá dentro hoje está em liberdade. A sua principal fonte de renda é o crochê e isso é muito importante porque tem uma estatística no Brasil que mostra que um a cada quatro condenados reincide no crime. 

projeto contribui também para que a gente possa acolher os detentos os egressos de forma que reduza essa incidência no crime Aqui fora temos mais de 10 participantes e não houve reincidência até o momentoentão isso é muito transformador 

Look criado pelo aluno e ex-detento, Anderson Figueiredo, apresentado no SPFW em 2018 | Foto: divulgação

SdA – Em 2020, foi lançado um documentário sobre o projeto. Como surgiu essa ideia e a sua relação com a diretora Laura Artigas?

GS – No São Paulo Fashion Week foi lançado o documentário longametragem dirigido por Laura Artigas, “O Ponto Firme”. Tínhamos a intenção de lançar no cinema, mas por conta da pandemia, fizemos uma pré-estreia online. A Laura acompanhou nove meses do desenvolvimento da primeira coleção do SPFW e esse documentário mostra todos os bastidores dentro do presídio Eu a conheci por meio do grupo de estudos da artista KarlGirotto e ela teve a ideia de fazer esse documentário. 

Além disso, lançamos também um mini-doc que conta o processo de criação da coleção em parceria com a NK Store. Esse foi dirigido pelo Danilo Sorrino e teve a participação da Laura Artigas também  

SdA – Quando você olha pra trás, para tudo o que construiu através do projeto Ponto Firme, o que você enxerga? 

GS – Quando a gente apresenta uma coleção na São Paulo Fashion Week como um projeto e não como uma marca comercial, isso tem uma relevância e faz com que mude a percepção das pessoas em relação ao sistema de moda, ao processo e às pessoas que estão por trás da criação. Isso é muito importante para transformar vidas. Então, a gente precisa continuar se desenvolvendo como projeto social para transformar a vida de mais pessoas. É um trabalho em construção.  

 


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