Presidiários têm suas vidas transformadas com o crochê e apresentam coleção no SPFW
Conheça o projeto Ponto Firme, de Gustavo Silvestre, que capacita internos nas artes manuais. Iniciativa já virou filme e o estilista fala em expandi-lo para outras penitenciárias.
Qual a sua primeira visão sobre um homem encarcerado? Muito provavelmente, essa ideia não contará com crochê, linhas ou agulhas, correto? E foi para ressignificar este senso comum sobre a população carcerária que o estilista Gustavo Silvestre criou, em 2015, o projeto Ponto Firme, em que ele ensina e capacita presos da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos – SP.
Entre cursos e oficinas, os internos aprendem a arte do crochê e já desenvolveram coleções aclamadas pela crítica e apresentadas na São Paulo Fashion Week, desde 2018. No ano passado, o projeto virou um documentário.
Batemos um papo com Gustavo Silvestre, que conta os bastidores por trás dessa missão e o quão importante tem sido fazer parte da reintegração de ex-detentos na sociedade.
SdA – O Ponto Firme surgiu em 2015 e, até agora, quais foram as grandes conquistas deste projeto?
GS – É um projeto que tem como missão o desenvolvimento de potencialidades, o incentivo à transformação social de detentos e também de egressos a partir da moda e das artes manuais. O Ponto Firme faz parte do calendário oficial da São Paulo Fashion Week, desde 2018, onde já apresentamos 3 desfiles. O último deles foi na edição de novembro, onde apresentamos uma coleção upcycling, feita em parceria com a NK Store, a partir de resíduo têxtil e de peças reaproveitadas da marca e com aplicação de crochê desenvolvida pelos egressos do projeto. Estreamos também um documentário longa-metragem, já nos apresentamos como exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo, tivemos uma performance envolvendo egressos na SP Arte e até a exportação de mais de meia tonelada de crochê para Nova Iorque, que se transformou nos provadores da loja Farm, a primeira dos Estados Unidos. Essas são as principais conquistas porque estão bastante atreladas à geração de renda, ao desenvolvimento pessoal e à reintegração social de detentos egressos.
SdA – Quantos internos já foram impactados com o projeto nestes 5 anos?
GS – Dentro da penitenciária Adriano Marrey, já formamos quase 200 alunos que passaram pelo curso de crochê e oficinas. Só que o projeto ganhou um desdobramento fora do presídio também, então trabalhamos tanto com os internos quanto com os egressos, que ganharam liberdade e procuram uma oportunidade de trabalho e integração social.
SdA – Existe a ideia de expandir o projeto Ponto Firme para outras casas de detenção?
GS – Sim e também existe a ideia de aumentar o número de egressos que são atendidos de fora do presídio. Hoje, temos alguns parceiros que estão do nosso lado, mas para que o projeto, que surgiu a partir de uma iniciativa voluntária, se expanda, é fundamental o apoio da iniciativa privada.
SdA – Você disse, certa vez, que o crochê lhe trouxe autonomia e que gostaria que outras pessoas também tivessem essa experiência. Como foi a primeira reação dos diretores da penitenciária quando você apresentou a ideia de ensinar crochê aos internos?
GS – O crochê traz bastante autonomia porque depende basicamente de uma agulha e de um fio. E, principalmente, de tempo e paciência, coisas que existem bastante para os internos. A ideia é tornar o tempo deles produtivo, de alguma forma, dentro da penitenciária.
Já a reação dos diretores foi muito positiva e o projeto só aconteceu porque existe essa mentalidade dentro da penitenciária Adriano Marrey. Apesar de ser um presídio de segurança máxima, é uma penitenciária modelo e existe essa preocupação em tornar útil o tempo desses detentos. Muitos já tinham contato com o crochê previamente, outros nunca tinham tocado numa agulha e acabaram aprendendo e desenvolvendo peças lindas! No começo, eu pensei que a gente ia fazer só umas oficinas livres e a proposta se tornou um curso formal, algo profissionalizante através do qual é possível ter, inclusive, remissão de pena.
SdA – Você encontrou resistência por parte dos internos? Como era a percepção deles sobre moda ou crochê e como é agora?
GS – Esse projeto é desenvolvido dentro de um dos ambientes mais machistas da sociedade, que é uma penitenciária masculina. Apesar disso, o trabalho é muito focado no desenvolvimento dos alunos, então existe uma concentração grande deles no desenvolvimento das peças, no aprendizado e uma expectativa muito grande em enxergar as artes manuais de uma outra forma.
Nossa preocupação é muito mais sobre influenciar essas pessoas para que elas vejam na moda e no crochê uma transformação. É uma emoção muito grande quando o interno vê que o trabalho dele tem potência, possibilidade de desfilar na semana de moda e pode estar dentro de museu. Isso é muito importante para continuar estimulando essas pessoas, não só lá dentro, mas aqui fora quando elas ganharam liberdade também.
SdA – Alguma história de vida marcou você durante esses anos? Pode compartilhar com a gente?
GS – Acho que a vida dessas pessoas que passam pelo projeto acaba mudando automaticamente. Temos o exemplo do Anderson, que já está há 4 anos com a gente como artesão. Ele teve o primeiro contato com o curso lá dentro e hoje está em liberdade. A sua principal fonte de renda é o crochê e isso é muito importante porque tem uma estatística no Brasil que mostra que um a cada quatro condenados reincide no crime.
O projeto contribui também para que a gente possa acolher os detentos e os egressos de forma que reduza essa incidência no crime. Aqui fora temos mais de 10 participantes e não houve reincidência até o momento, então isso é muito transformador.
SdA – Em 2020, foi lançado um documentário sobre o projeto. Como surgiu essa ideia e a sua relação com a diretora Laura Artigas?
GS – No São Paulo Fashion Week foi lançado o documentário longa–metragem dirigido por Laura Artigas, “O Ponto Firme”. Tínhamos a intenção de lançar no cinema, mas por conta da pandemia, fizemos uma pré-estreia online. A Laura acompanhou nove meses do desenvolvimento da primeira coleção do SPFW e esse documentário mostra todos os bastidores dentro do presídio. Eu a conheci por meio do grupo de estudos da artista Karla Girotto e ela teve a ideia de fazer esse documentário.
Além disso, lançamos também um mini-doc que conta o processo de criação da coleção em parceria com a NK Store. Esse foi dirigido pelo Danilo Sorrino e teve a participação da Laura Artigas também.
SdA – Quando você olha pra trás, para tudo o que construiu através do projeto Ponto Firme, o que você enxerga?
GS – Quando a gente apresenta uma coleção na São Paulo Fashion Week como um projeto e não como uma marca comercial, isso tem uma relevância e faz com que mude a percepção das pessoas em relação ao sistema de moda, ao processo e às pessoas que estão por trás da criação. Isso é muito importante para transformar vidas. Então, a gente precisa continuar se desenvolvendo como projeto social para transformar a vida de mais pessoas. É um trabalho em construção.
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