“O obstáculo maior é a consciência”, diz professora da USP sobre resíduos têxteis
Entrevistamos a pesquisadora da USP, Francisca Dantas Mendes, que afirma que o problema dos resíduos têxteis está diretamente ligado à qualidade do produto.
Considerando apenas o polo de confecções da cidade de São Paulo, 35 toneladas de resíduos têxteis são descartadas por dia no aterro sanitário. Essa situação já é alarmante por si só, visto que a maioria deste descarte é feito por micro confecções. Já as empresas maiores acabam destinando suas sobras a catadores de recicláveis, sem ao menos acompanhar seu destino final.
Este cenário é colocado sob holofotes na cadeia pela professora Francisca Dantas Mendes, pesquisadora no Instituto de Estudos Avançados (IEA) que estuda o impacto ambiental da moda. Segundo ela, os resíduos têxteis representam de 25% a 35% da produção.
Para ajudar empresários a compreenderem melhor este problema e consumidores a optarem por compras mais responsáveis, entrevistamos a professora Tita, como é conhecida. Ela explica porque tanto resíduo é gerado e sugere ações práticas para a destinação correta de resíduos têxteis.
SdA – Professora, em 2018, a Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil) soltou a informação de que cerca de 10% da produção têxtil paulista se transformam em resíduos. Atualmente, houve alteração neste número?
FDM – Para que a peça seja vestível, há necessidade de espaços para a passagem dos braços, cabeças e pernas. Esses seriam o mínimo de resíduos gerados na etapa de corte em uma manufatura do vestuário. Porém, no processo produtivo do vestuário de moda, o volume de resíduos têxteis varia conforme a estética e o design da peça. Os recortes do molde se encaixam com maior ou menor facilidade, conforme a complexidade de cada parte do molde. Como resultado, temos um aumento ou redução de resíduos gerados.
Nossas pesquisas junto às empresas prestadoras de serviço de corte na região do Brás e Bom Retiro, resultaram nas seguintes respostas: peças mais elaboradas geram em torno de 25% da matéria prima têxtil cortada, sendo que algumas chegam a resultar em 35% de resíduos em função da dificuldade de encaixe das partes dos moldes. A segunda reposta é que dificilmente há menos que 15%, principalmente pela alteração de tamanho das partes dos moldes em função da graduação de tamanhos das peças, que aumentam a dificuldade de encaixe.
SdA – A coleta de resíduos é algo que atinge e funciona na maioria das empresas? Qual é o maior obstáculo para ser uma ação efetiva de fato?
FDM – Na manufatura do vestuário, em sua maioria confecções terceirizadas, os resíduos têxteis do departamento de corte são uma constante. O obstáculo maior é a consciência de quem é responsável por esse resíduo gerado. É a designer que não pensou nele no P&D? É a empresa dona da marca contratante da terceirizada? Ou a terceirizada? A responsabilidade é passada para o final da fila sem qualquer ética. A maioria das empresas não se preocupa porque nunca contabilizou a real quantidade de resíduos têxteis gerada por dia, por semana, por mês. Como consequência, não dão importância a uma correta gestão da geração e do destino adequado desse grande volume em suas etapas de corte.
SdA – Dentro da sua experiência, quais as melhores práticas que empresas podem adotar para dar um destino responsável a seus resíduos?
FDM – Primeiramente, as empresas precisam ter consciência da importância do assunto: resíduos sólidos têxteis, desde o desenvolvimento do produto, etapas de produção, peças não vendidas e peças pós-consumo. Em seguida, devem reconhecer o volume de resíduos têxteis gerados, pesar todos os dias, saber suas características: tamanhos aproveitáveis e os não aproveitáveis, tipo de fibras puras, mistas e cores. Isso é possível a partir do desenvolvimento de produto, do estudo do risco de encaixe, desenvolvimento de coleção e ordem de produção. A partir dessas informações, as empresas devem planejar como minimizar a geração dos resíduos, a separação por tipos de fibras e tamanhos e, por fim, realizar a gestão adequada do que será realmente descartado, como será esse descarte e rastreá-lo, evitando o destino inadequado.
SdA – A discussão sobre sustentabilidade crescente no Brasil e no mundo teve um impacto prático na indústria têxtil nacional? Quais as principais mudanças na última década em relação a isso?
FDM – A Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei PNRS 12.305/10, causou um leve impacto porque não cita no seu texto os resíduos têxteis, mas destaca que o produtor é responsável pela destinação correta dos resíduos gerados na produção. A mudança foi pequena. Como resultado da política e da lei, as empresas de marca de vestuário, responsáveis pelo desenvolvimento e produção (terceirizadas ou não), passaram a pagar para catadores ou empresas recolherem os seus resíduos do corte, mas não acompanham as suas ações. Como resultado a destinação não é correta.
SdA – A senhora disse em uma entrevista que quase não compra roupas novas. Qual a filosofia por trás dessa escolha?
FDM – Eu venho de um tempo (1967 – 1970) em que a moda propunha uma estética nova, desafiadora, bem cortada e bem costurada. Atualmente, não encontro roupas com boa modelagem e bem costuradas, com estética diferenciada, o que é uma pena, pois o desenvolvimento da tecnologia têxtil foi muito grande nas últimas décadas. Sou muito exigente com a qualidade dos tecidos e da modelagem. Justamente por ser modelista e pesquisadora de modelagem, de qualidade no desenvolvimento de produto e de produção, meus critérios ficaram muito apurados. Atualmente, o vestuário de moda pelo sistema fast fashion é muito descartável e não vale o preço de venda. Tenho muita roupa boa (tecido e modelagem) do tempo em que eu confeccionava para mim. Sou uma mulher pequena, uso tamanho 38, difícil encontrar roupa boa no meu tamanho e para uma senhora de 68 anos, que gosta de produto diferenciado.
Não é filosofia, é falta de produto de qualidade (estética, tecido, modelagem e costura) com preço correto. Sei o que é fazer um preço correto de produto. Como confeccionista, tive que pesquisar e aprender a fazer gestão de custos e preço de venda dos meus produtos. Posteriormente aprofundei minhas pesquisas e ministrei disciplina de custos nos cursos de moda das faculdades Anhembi Morumbi e FMU.
SdA – Muita gente acredita que a diminuição do consumo de roupas pode gerar desemprego. Não acredito que haverá desemprego. O problema é a qualidade do tecido, da modelagem, do processo produtivo e do que está sendo produzido. O sistema fast fashion busca a redução de tudo: tecido, tempo de produção, visando o custo final do produto. Na composição do preço final, o custo maior fica na logística de distribuição e na gestão de comercialização. Como resultado, as peças não têm criatividade, design e estética diferenciada.
Uma peça com estética diferenciada de moda exige desenvolvimento no departamento de criação e não execução de cópias com pequenas alterações de comprimento e decotes de uma mini coleção para outra mini coleção, que é uma proposta do sistema fast fashion que distribui coleções a cada 15 dias. Produto de qualidade leva mais tempo para desenvolver, modelar, cortar e costurar. Como consequência, o processo produtivo levará mais tempo, será mais bem pago e todos ganham com isso, as modelistas, as costureiras e o meio ambiente.
SdA – Então, esta questão do desemprego é um argumento furado?
Esse argumento só favorece o sistema fast fashion de produção em massa para grandes magazines e lojas de multimarcas. Num processo produtivo acelerado, em que a qualidade fica em segundo plano e o foco é a obsolescência programada do produto, o volume de produção é maior do que em um processo produtivo de peças mais elaboradas. Nesse processo menos acelerado, todos os funcionários, modelistas, cortadores e costureiras, estariam trabalhando um tempo maior de produção resultando maior qualidade nos produtos. O preço do produto aumentaria, mas seu tempo do ciclo de vida do produto seria maior. O consumidor teria mais poder de escolha e não compraria por impulso.
SdA – Pode citar algumas boas iniciativas do setor em relação à destinação inteligente de resíduos?
FDM – O tecido possui um alto valor agregado de desenvolvimento e produção. Ele não deve ser destinado aos aterros sanitários. É um desperdício de dinheiro. Antes da realização da etapa de corte, é importante:
– Realizar um planejamento reunindo os produtos que possuem tecidos com o mesmo tipo de fibras têxteis;
– Desenvolver um estudo com o risco de encaixe dos moldes, verificando a possiblidade de aproveitamento dos espaços entre as partes da modelagem para a criação de um segundo produto ou cortes de retângulos e círculos. Estes podem ser encaminhados para aproveitamentos em produtos desenvolvidos por ONGs;
– Separar os resíduos por tipos de fibras, cores e tamanhos;
– Encaminhar para uma empresa de desfibragem o restante dos resíduos que realmente não possuem condições de serem aproveitados com criatividade.
SdA – Qual o impacto que a falta de gestão na destinação de resíduos pode trazer ao Brasil?
FDM – O impacto ao meio ambiente é extremamente danoso. O volume de resíduos gerados no departamento de corte é muito grande. No polo de confecções do município de São Paulo, até o início de março de 2020, o volume era de mais de 35 toneladas de resíduos por dia que ia para o aterro sanitário. A maioria provem das micro confecções informais. As formalizadas e de maior porte pagam ou doam, mas não acompanham o descarte.
Os resíduos têxteis descartados nas calçadas das ruas do polo de confecção de SP, por serem materiais de alto valor agregado, passam a ser de direito dos catadores e possibilita a geração de renda quando bem utilizados.
Por isso, precisamos de políticas públicas que valorizem esses materiais e ofereçam espaço de transbordo têxtil com o trabalho de cooperativas de catadores. O objetivo é o melhor aproveitamento dos resíduos como matéria prima no desenvolvimento e produção de novos produtos artesanais com longo ciclo de vida.
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